terça-feira, 8 de maio de 2012

As mãos

Suas doces e brancas mãos, que eu tenho o prazer de contemplar, que me fazem meio que quase lamentar o fato de não serem minhas... Esses dedos, ligeiramente longos, extremamente finos e obsessivamente lindos... como se ao contempla-la minha vida fizesse um sentido, como se observá-la fosse quase como um caminho, um destino, o qual eu seria eternamente escravo por examiná-la  com claridade alta ou na penumbra... Em alguns momentos chego a sonhar com elas, esses lindos dedos, a me tocar a pele, a acariciar meus cabelos, a passar lenta e suavemente por meu rosto... Não ouço sua voz... não conheço sua voz... apenas quero poder ter essas mãos, para exibi-la como um lindo troféu, em que a qualquer hora poderia ir e simplesmente contemplar, sem ser interrompido!!!
Em desejos mais escabrosos já imaginei cortá-la fora e empalha-la para mim, mas imaginei que fora de sua dona elas perderiam totalmente seu aspecto corado e liso, com que a fazem ainda mais linda... O necessário seria possuir quem as tem, e torna-la escrava de meus desejos eternamente. Porém, não posso fazer isto, até por que não conheço a dona dessas mãos, não a reconheceria lhe olhando nos olhos, contemplando seus cabelos, seu corpo, ela toda... eu não a vejo, eu simplesmente vejo as mãos... As mãos hipnotizantes que me causam um delírio sem fim... uma paixão, uma obsessão... um tremor, como se fosse uma dependência... Eu amo essas mãos, eu as venero... As mãos.


"Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está me segurando a mão.
Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada.], esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou a altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira." Clarice Lispector em "A Paixão segundo G.H."

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Jean - Paul Sartre

Minha paixão por Sartre é antiga... Acredito ter lido a primeira vez algo sobre esse grande e magnífico filósofo quando ainda tinha 17 anos.
Meu namorado diz que eu como seus livros com farinha e acredito ser bem verdade! Eu o amo e levo o existencialismo como forma de vida... queria ser a musa existencialista! Mas não sou, infelizmente! 
Vou postar um fragmento do livro dele "A Náusea", pois estou radiante pelo fato de o te-lo agora... não para mim, para exibi-lo na minha prateleira como troféu, mas para o deleite de minha leitura, o que já esta de bom tamanho por hora, pois procurava este livro desde quando li sobre Sartre a primeira vez, lá mesmo, aos 17... Portanto, transcreverei a primeira parte do livro... boa leitura, para quem de repente o ler!!!



FOLHA SEM DATA

    O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia. Fazer um diário para os considerar clareza. Não deixar escapar as diferenças de pormenor, os fatos miúdos, mesmo quando parecem insignificantes, e sobretudo ordená-los. Tenho de dizer como é que vejo esta mesa, a rua, as pessoas, a minha bolsa de tabaco, visto que foi isso que mudou. Tenho de determinar exatamente a extensão e a natureza dessa mudança.
     Por exemplo, tenho aqui uma caixa de cartolina que contém o meu frasco de tinta.Devia tentar dizer como é que a via antes e como é que agora a... Pois bem! É um paralelepípedo reto, sobressai dum fundo... Que tolice! Não há nada a dizer dela. É isto que é preciso evitar; é preciso não achar estranho o que não tem estranheza nenhuma. É este o perigo, creio eu, quando se faz um diário: exagera-se tudo, espia-se mais, excede-se constantemente a verdade. Por outro lado - e justamente a propósito desta caixa ou doutro objeto qualquer - sentir de novo aquela impressão de anteontem. Tenho de estar sempre pronto, senão mais uma vez ela me escaparia. É preciso não... coisa nenhuma, mas registar cuidadosamente e com minúcias extremas tudo o que acontece.
     Está claro que já não posso escrever nada com nitidez sobre aquelas histórias de sábado e de anteontem, já estou muito longe delas; tudo quanto posso dizer é que tanto num caso como no outro, não houve nada do que geralmente se chama de um acontecimento. Sábado, uns garotos estavam a atirar pedrinhas ao mar para as fazer saltar de ricochete, e pretendi atirar uma, como eles. Nesse momento detive-me, deixei cair a pedra e fui-me embora. Devia ir com uns ares de transviado, com certeza, porque os garotos desataram a rir, quando voltei as costas.
       Isto, quanto ao exterior. O que se passou em mim não deixou traços claros. Havia qualquer coisa que vi e que me repugnou, mas já não sei se estava a olhar para o mar ou para a pedra. A pedra era chata; dum lado estava inteiramente seca, húmida e enrolada de outro. Tinha-a agarrado pelas beiras, com os dedos muito afastados, para não me sujar.
      Anteontem, foi muito mais complicado. E tinha havido também uma série de coincidências, de equívocos, que não consigo explicar. Mas não vou perder tempo a confiar tudo isso ao papel. Enfim, é certo que tive medo ou qualquer sentimento desse gênero. Se ao menos soubesse do que tive medo, já seria um grande passo em frente. O que é curioso é que não estou disposto de modo algum a considerar-me louco. Vejo com evidência que não estou louco: estas mudanças ocorrem todas nos objetos. É disso, pelo menos, que queria ter a certeza.

Dez horas e meia

      Pode bem ser, afinal, que tenha sido uma pequena crise de loucura. Já não restam sinais dela. Os sentimentos esquisitos da semana passada parecem-se hoje bastante ridículos: não consigo revivê-los. Esta noite estou meio à vontade, meio burguêsmente instalado no mundo. Aqui é o meu quarto, virado para o nordeste. Lá em baixo, a Rua dos Mutilados e a estação nova, em construção. Vejo da janela, à esquina do Boulevard Victor-Noir, as luzes vermelhas e brancas do Rendez-vous dos Ferroviários. Chegou neste momento o comboio de Paris. As pessoas saem da estação saem da estação velha e disseminam-se pelas ruas. Ouço passos e vozes. Muitos esperam o último elétrico. Vão apinhar-se num grupinho triste à roda do candeeiro a gás, precisamente por  baixo da minha janela. Pois olhem, ainda têm de esperar alguns minutos: o elétrico não passa antes das dez e quarenta e cinco. Oxalá que não cheguem caixeiros viajantes esta noite: tenho tanta vontade de dormir e tanto sono atrasado. Uma noite bem dormida, uma só chegaria para me varrer da cabeça todas estas histórias.
        Onze menos um quarto: já não há que temer. Se tivesse vindo, já cá estavam. A não ser que seja o dia do sujeito de Ruão. Vem todas as semanas, reservam-lhe o quarto nº 2, no 1º andar, o que tem um bidé. Talvez venha ainda: às vezes vai beber  uma cerveja Rendez-vous dos Ferroviários antes de se deitar. Mas é pessoa que faz pouco barulho. É muito baixo e muito limpo, com bigode preto engraxado e chinó. Ele aí vem.
      Sim, senhor, quando o ouvi subir a escada, o coração deu-me um baque de contentamento, tão reconfortante era a sua chegada: de que há que ter receio num mundo tão regular? Creio que estou curado.
        E lá vem o elétrico da linha 7 (Matadouro-Docas Grandes). Chega com um grande ruído de ferros velhos. Põe-se outra vez em andamento carregado de malas e de crianças adormecidas; vai agora sumir-se no negrume de este, em direção das Docas Grandes e das fábricas. É o penúltimo elétrico. O último passa daqui a uma hora.
      Vou-me deitar. Estou curado, renuncio a escrever as minhas impressões dia a dia, como as rapariguinhas num lindo caderno novo.
           Num caso apenas poderia ser interessante fazer um diário: no caso de...
Jean-Paul Sartre.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um convite inoportuno!



Um jovem,
desses que conhecemos em bares,
convidou-me para um sarau de poesias.
Ao que de pronto recusei:
“Não gosto dessas coisas;
Qualquer reunião intelectual que não misture bebida e cigarros,
não deve contar com a minha presença!”
Vai rolar vinho.
“Vinho? Isso é um sarau ou uma missa?
Você não está no Chile, meu jovem...
Vocês precisam, sim
beber Cachaça!
Eu não consigo ficar bêbado com vinhos desde os doze!”.
Me incomoda a quadrada forma como as poesias são recitadas...
Sempre igual!
Uma interpretação rasa,
Quase no ritmo duma  resa dominical!
Enfim, uma reza rasa,
sem cura, sem milagre.
“Por isso esses merdas bebem vinho
Já estão a um passo de beber vinagre”.

Ives Monteiro.

terça-feira, 1 de maio de 2012

“O Artista”, ou quando o silêncio brigou com o som


Tive o privilégio de assistir um dos melhores filmes da atualidade. Uma obra prima do diretor Michel Hazanavicius, com a atuação primorosa de Jean Dujardin, esse filme me encantou em tudo! Estava em cartas no Cine Olympia semana passada! Quem assitiu pode confirmar meu entusiasmo e aprovação... Este filme era tudo que o cinema atual estava precisando. Leia a seguir a crítica de Luiz Zanin, publicada no jornal O Estadão de 07 de fevereiro de 2012.


O Artista, ou quando o silêncio brigou com o som.


Claro que O Artista é um objeto estranho no mundo do cinema, Francês, celebra a época de ouro de Hollywood e, com seu subtexto e desfecho esperançosos, chega envolto numa aura inegável de nostalgia.
Por que o sentimento nostálgico às vezes triunfa, nas vidas individuais e também na esfera coletiva? Porque alguma coisa (ou muitas coisas) no presente não nos agradam e então preferimos nos refugiar no passado eleito em nossa fantasia como uma época de ouro perdida.
O Artista tem disso. Tem também algo mais, é verdade: instala-se naquela dobra da evolução do cinema que foi a difícil passagem do mudo para o sonoro. Etapa que destruiu muitas carreiras e enfrentou resistência em toda a parte – menos entre o público, que prontamente adotou o ‘cinema falado” (de que fala Noel Rosa no samba que leva esse nome). Um gênio como Chaplin postergou o que pôde o uso de diálogos em seus filmes. E incontáveis atores e diretores não se adaptaram e tiveram suas carreiras destruídas. Billy Wilder, outro estrangeiro, fez o melhor filme (sonoro) sobre a destruição de pessoas causada pelo cinema falado – crepúsculo dos Deuses, de 1950, com Gloria Swanson como protagonista e Buster Keaton fazendo uma ponta.
Michel Hazanavicius deve ter intuído que vivemos em uma época semelhante, embora aparentemente menos dramática. Tudo passa para o lado do digital, e o compartilhamento de arquivos, vulgo pirataria, ameaça o modelo de negócio com o qual os grandes estúdios se acostumaram. Astros de carne e osso temem ser substituídos por contrafações digitais, como o Gollun de O Senhor dos Anéis. A técnica de motion capture digitaliza os movimentos dos atores reais e os reprocessa em computador dando vida a protagonistas digitais, como em Tintim. Estamos na iminência de um mundo novo, que desagrada aos donos do mundo antigo e causa insegurança em muita gente. Quando o presente nos provoca calafrios regressamos ao passado, como a um simbólico útero materno.
Por isso, o protagonista de O Artista é um certo George Valentin (Jean Dujardin, extraordinário), grande astro do cinema mudo, que arranca suspiros das fãs. Uma dela é Peppy Miller (Bérénice Bejo, mulher de Hazanavicius0 que de fã se torna estrela e continua apaixonada pelo astro, logo em processo de decadência. Conhecem-se num momento divergente da vida dos dois – um está no topo e vai cair enquanto que a a outra sai do anonimato para a glória. No quadro de fundo, a passagem do sonoro para o falado, que se deu entre 1928 e o começo de 1930.
O charme do protagonista (mesmo caído em desgraça), o frescor da estrela, magnificado por uma brejeira pintinha artificial, ideia de seu infeliz pigmalião, o pragmatismo dos produtores, simbolizado por um John Goodman brilhante – tudo isso e mais um cãozinho elétrico e fiel são ingredientes que, bem trabalhados e mesclados fazem de O Artista um filme muito prazeroso. E que, claro, tem encantado plateias por onde passa e tornou-se o favorito ao Oscar com suas dez indicações. Terminamos de assisti-lo com inegável gosto e com uma também inevitável pergunta a martelar o cérebro: sim, mas e daí?