quinta-feira, 3 de maio de 2012

Jean - Paul Sartre

Minha paixão por Sartre é antiga... Acredito ter lido a primeira vez algo sobre esse grande e magnífico filósofo quando ainda tinha 17 anos.
Meu namorado diz que eu como seus livros com farinha e acredito ser bem verdade! Eu o amo e levo o existencialismo como forma de vida... queria ser a musa existencialista! Mas não sou, infelizmente! 
Vou postar um fragmento do livro dele "A Náusea", pois estou radiante pelo fato de o te-lo agora... não para mim, para exibi-lo na minha prateleira como troféu, mas para o deleite de minha leitura, o que já esta de bom tamanho por hora, pois procurava este livro desde quando li sobre Sartre a primeira vez, lá mesmo, aos 17... Portanto, transcreverei a primeira parte do livro... boa leitura, para quem de repente o ler!!!



FOLHA SEM DATA

    O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia. Fazer um diário para os considerar clareza. Não deixar escapar as diferenças de pormenor, os fatos miúdos, mesmo quando parecem insignificantes, e sobretudo ordená-los. Tenho de dizer como é que vejo esta mesa, a rua, as pessoas, a minha bolsa de tabaco, visto que foi isso que mudou. Tenho de determinar exatamente a extensão e a natureza dessa mudança.
     Por exemplo, tenho aqui uma caixa de cartolina que contém o meu frasco de tinta.Devia tentar dizer como é que a via antes e como é que agora a... Pois bem! É um paralelepípedo reto, sobressai dum fundo... Que tolice! Não há nada a dizer dela. É isto que é preciso evitar; é preciso não achar estranho o que não tem estranheza nenhuma. É este o perigo, creio eu, quando se faz um diário: exagera-se tudo, espia-se mais, excede-se constantemente a verdade. Por outro lado - e justamente a propósito desta caixa ou doutro objeto qualquer - sentir de novo aquela impressão de anteontem. Tenho de estar sempre pronto, senão mais uma vez ela me escaparia. É preciso não... coisa nenhuma, mas registar cuidadosamente e com minúcias extremas tudo o que acontece.
     Está claro que já não posso escrever nada com nitidez sobre aquelas histórias de sábado e de anteontem, já estou muito longe delas; tudo quanto posso dizer é que tanto num caso como no outro, não houve nada do que geralmente se chama de um acontecimento. Sábado, uns garotos estavam a atirar pedrinhas ao mar para as fazer saltar de ricochete, e pretendi atirar uma, como eles. Nesse momento detive-me, deixei cair a pedra e fui-me embora. Devia ir com uns ares de transviado, com certeza, porque os garotos desataram a rir, quando voltei as costas.
       Isto, quanto ao exterior. O que se passou em mim não deixou traços claros. Havia qualquer coisa que vi e que me repugnou, mas já não sei se estava a olhar para o mar ou para a pedra. A pedra era chata; dum lado estava inteiramente seca, húmida e enrolada de outro. Tinha-a agarrado pelas beiras, com os dedos muito afastados, para não me sujar.
      Anteontem, foi muito mais complicado. E tinha havido também uma série de coincidências, de equívocos, que não consigo explicar. Mas não vou perder tempo a confiar tudo isso ao papel. Enfim, é certo que tive medo ou qualquer sentimento desse gênero. Se ao menos soubesse do que tive medo, já seria um grande passo em frente. O que é curioso é que não estou disposto de modo algum a considerar-me louco. Vejo com evidência que não estou louco: estas mudanças ocorrem todas nos objetos. É disso, pelo menos, que queria ter a certeza.

Dez horas e meia

      Pode bem ser, afinal, que tenha sido uma pequena crise de loucura. Já não restam sinais dela. Os sentimentos esquisitos da semana passada parecem-se hoje bastante ridículos: não consigo revivê-los. Esta noite estou meio à vontade, meio burguêsmente instalado no mundo. Aqui é o meu quarto, virado para o nordeste. Lá em baixo, a Rua dos Mutilados e a estação nova, em construção. Vejo da janela, à esquina do Boulevard Victor-Noir, as luzes vermelhas e brancas do Rendez-vous dos Ferroviários. Chegou neste momento o comboio de Paris. As pessoas saem da estação saem da estação velha e disseminam-se pelas ruas. Ouço passos e vozes. Muitos esperam o último elétrico. Vão apinhar-se num grupinho triste à roda do candeeiro a gás, precisamente por  baixo da minha janela. Pois olhem, ainda têm de esperar alguns minutos: o elétrico não passa antes das dez e quarenta e cinco. Oxalá que não cheguem caixeiros viajantes esta noite: tenho tanta vontade de dormir e tanto sono atrasado. Uma noite bem dormida, uma só chegaria para me varrer da cabeça todas estas histórias.
        Onze menos um quarto: já não há que temer. Se tivesse vindo, já cá estavam. A não ser que seja o dia do sujeito de Ruão. Vem todas as semanas, reservam-lhe o quarto nº 2, no 1º andar, o que tem um bidé. Talvez venha ainda: às vezes vai beber  uma cerveja Rendez-vous dos Ferroviários antes de se deitar. Mas é pessoa que faz pouco barulho. É muito baixo e muito limpo, com bigode preto engraxado e chinó. Ele aí vem.
      Sim, senhor, quando o ouvi subir a escada, o coração deu-me um baque de contentamento, tão reconfortante era a sua chegada: de que há que ter receio num mundo tão regular? Creio que estou curado.
        E lá vem o elétrico da linha 7 (Matadouro-Docas Grandes). Chega com um grande ruído de ferros velhos. Põe-se outra vez em andamento carregado de malas e de crianças adormecidas; vai agora sumir-se no negrume de este, em direção das Docas Grandes e das fábricas. É o penúltimo elétrico. O último passa daqui a uma hora.
      Vou-me deitar. Estou curado, renuncio a escrever as minhas impressões dia a dia, como as rapariguinhas num lindo caderno novo.
           Num caso apenas poderia ser interessante fazer um diário: no caso de...
Jean-Paul Sartre.

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